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A Indústria de Rendering: sustentabilidade e nutrição animal

Escrito por: Lucas Cypriano - Graduação em Zootecnia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1998). Nutricionista de aves e suínos por 6 anos (fábricas de premix) (1999 a 2003). Gerente nacional de vendas de aditivos (preservantes, fitogênicos, acidificantes, adsorventes de micotoxinas) (2003 a 2011). Coordenador técnica da Associação Brasileira de Reciclagem Animal (2011 a atual). Membro do Scientific Advisory Painel da World Renderes Organization (2014 a atual). Primeiro Vice-Presidente da World Renderes Organization (2019 a 2021). Presidente da World Renderes Organization (2021 a atual).
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A Indústria de Rendering: sustentabilidade e nutrição animal no centro da produção moderna

O rendering, ou seja, o processamento de ROA (Resíduos de Origem Animal), é uma atividade essencial para a sustentabilidade ambiental, saúde pública e eficiência econômica da pecuária moderna.

Ele transforma ROA que seriam descartados – como vísceras, sangue, ossos, gorduras e penas – em ingredientes de origem animal de alto valor, amplamente utilizados em rações para animais de produção, aquicultura e até mesmo alimentos para animais de estimação.

Sem o rendering, só no Brasil, mais de 13 milhões de toneladas de ROA seriam descartados anualmente, criando problemas ambientais significativos, como emissões descontroladas de gases de efeito estufa e riscos à saúde pública devido à proliferação de patógenos.

 

História e Relevância

A utilização de Resíduos de Origem Animal (ROA) é tão antiga quanto a própria pecuária. Produtos como fertilizantes, sabões e velas foram tradicionalmente feitos a partir de materiais “não comestíveis”. 

No Brasil, a indústria de rendering nasceu na década de 1920, teve sua primeira regulamentação no Decreto nº 30691 de 29 de março de 1952 (Regulamento de Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal – RIISPOA). Hoje, está sob o Decreto nº 12.031 de 28 de maio de 2024 (Decreto da Alimentação Animal – DAA).

Sem dúvidas, houve enorme avanço da tecnologia e da ciência, que levaram ao desenvolvimento de processos altamente sofisticados que maximizam o aproveitamento desses resíduos, a um melhor entendimento da microbiologia do processo e das alterações físico-químicas que acontecem na fabricação de farinhas, gorduras, hemoderivados, proteínas hidrolisadas e palatabilizantes.

A indústria de rendering processa resíduos de frigoríficos, açougues, supermercados e abatedouros de forma segura, auditável, com total rastreabilidade de matérias-primas e processos, garantindo que quase a integralidade dos ROAs produzidos pela pecuária e coletado pelos fabricantes de farinhas e gorduras de origem animal sejam utilizados de forma útil.

Isso reduz drasticamente o desperdício, transformando o que poderia ser visto como passivo ambiental em insumos valiosos para diversas cadeias produtivas.

 

O Processo de Rendering: Transformação e Segurança

O rendering pode ser resumido como um processo que se vale de aquecimento das matérias-primas para reduzir a umidade, separação da gordura e inativação de microrganismos indesejados.

Os sistemas modernos são rigorosamente controlados, utilizando temperaturas e tempos de cozimento cuidadosamente monitorados para eliminar patógenos (p.ex.: Salmonella spp), garantindo que os produtos finais sejam seguros para uso na alimentação animal.

Além disso, instalações modernas são projetadas para prevenir a contaminação cruzada entre os materiais crus e os produtos processados, atendendo às regulamentações sanitárias.

As condições de tempo e temperatura utilizadas no processamento variam conforme o ROA e a tecnologia empregada, mas entende-se que de forma segura, o processo de secagem expõe os resíduos “in natura” a temperaturas muito elevadas, por períodos de tempo que ultrapassam em muitas vezes o tempo mínimo necessário para a eliminação de microrganismos patogênicos.

Prova disso é que a OMSA (Organização Mundial para a Saúde Animal), em 2024, reconheceu farinhas e gorduras de origem animal como commodities seguras para o comércio internacional, independentemente do status sanitário do país para diversas doenças, entre elas, Influenza Aviária de Alta Patogenicidade, Febre Aftosa e Peste Suína Africana.

A exceção a essa “regra” fica a cargo dos príons, como por exemplo, o príon de EEB Clássica (Encefalopatia Espongiforme Bovina). Desde 2005 o setor de rendering do Brasil é obrigado a submeter todas as farinhas que contenham resíduos de ruminantes a um processo hiperbárico (133ºC, 20 minutos, 3 bar absolutos).

Sendo o Brasil classificado como de risco insignificante pela OMSA desde 2012, e com a publicação do novo capítulo de EEB pela OMSA, em seu Código de Saúde dos Animais Terrestres em 2023, o MAPA publicou a Portaria DSA/MAPA nº 1.180, de 9 de setembro de 2024, onde se estabelece que, em 2 de maio de 2025, o setor será desobrigado a aplicar esse processo.

Com isso, não apenas uma redução no custo fabril é esperada, mas também, uma melhoria na digestibilidade das farinhas que contenham resíduos de ruminantes.

 

Produtos e Aplicações na Nutrição Animal

Os produtos gerados pelo rendering são componentes indispensáveis nas dietas de animais de produção, como bovinos, suínos, aves e peixes, além de animais de estimação.

Proteínas de Alta Qualidade

Produtos como farinha de carne e ossos, farinha de aves, farinhas de peixes, farinha de penas hidrolisada e farinha de sangue oferecem proteínas de alta digestibilidade e um perfil balanceado de aminoácidos essenciais.

Isso é vital para promover o crescimento saudável dos animais e melhorar a eficiência alimentar de monogástricos.

A farinha de penas hidrolisada é uma importante fonte de proteína “by-pass” para ruminantes, mas tem seu uso vetado nas dietas de ruminantes no Brasil desde 2004: o MAPA proibiu seu uso em nome de uma suposta mitigação de risco de ampliação da EEB Clássica.

A Portaria DSA/MAPA nº 1.180, de 2024, finalmente corrige essa distorção, e se assume de forma clara as recomendações da OMSA para a mitigação de amplificação de risco da EEB.

Fontes Concentradas de Energia

Gorduras animais, como sebo bovino, banha suína e gordura de aves, são fontes de energia metabolizável mais concentrada do que carboidratos.

Em ambientes quentes, quando comparadas à grande maioria dos óleos vegetais, as gorduras animais são mais estáveis à oxidação que as fontes de óleos vegetais disponíveis no Brasil (exceção ao óleo de palma e óleo de coco).

Além disso, melhoram o sabor e a textura das rações, trazendo melhor palatabilidade à dieta e maior aceitação do animal à ração formulada. 

Minerais Essenciais

Produtos como farinha de carne e ossos e farinha de vísceras de aves são fontes ricas em cálcio e fósforo, indispensáveis para a formação de ossos, cartilagens e para o funcionamento adequado de músculos e órgãos.

A alta disponibilidade de fósforo nesses produtos é especialmente relevante, já que o fósforo mineral extraído da natureza é um recurso não renovável.

Sustentabilidade Nutricional

Ingredientes derivados do rendering permitem substituir parcialmente grãos, óleos vegetais, macrominerais e outras fontes de nutrientes nas rações, reduzindo a pressão sobre os recursos agrícolas e promovendo sistemas alimentares mais equilibrados e sustentáveis.

As farinhas animais fornecem alguns aminoácidos não presentes em fontes vegetais:

Hidroxiprolina: essencial à estrutura e estabilidade de tecidos conjuntivos (tendões, pele, cartilagem) e ossos, auxilia na cicatrização e regeneração tecidual.

Taurina: auxilia a função cardíaca, no desenvolvimento do sistema neurológico, atuando como antioxidante endógeno e auxiliando a resposta imunológica.

“Espaço” em Fórmula

As farinhas de origem animal apresentam, ainda, um outro benefício: não apresentam valores significativos de componentes de baixo ou nenhum valor nutricional, como proteínas e carboidratos indigestíveis, sílicas ou minerais de baixo valor biológico e afins.

Por exemplo: o calcário calcítico é 38% cálcio sem nenhum outro nutriente importante em sua constituição. Ao adicionar o calcário calcítico à dieta, se adiciona 2/3 de “silicatos” sem valor biológico.

O mesmo ocorre com o farelo de soja, que contém mais de 1/3 de seu conteúdo em carboidratos de baixo ou nenhum valor biológico. Ao se utilizar farinhas de origem animal, “abre-se” espaço em formulação.

 

Benefícios Econômicos e Ambientais

A indústria de rendering desempenha um papel crucial na economia global. Ela reduz custos de descarte de ROAs para frigoríficos e abatedouros, cria valor a partir de subprodutos do abate e minimiza o impacto ambiental da pecuária.

Ao evitar o descarte inadequado de resíduos orgânicos, o setor contribui para:

Redução de emissões de gases de efeito estufa, como metano.

Proteção de recursos hídricos, prevenindo a contaminação por nutrientes em excesso.

Controle de doenças, eliminando patógenos perigosos.

Upcycling, valorizando ROA ricos em nutrientes que se tornariam rejeitos, retornando-os à própria nutrição de animais, reduzindo a demanda por ingredientes de “primeiro uso” na alimentação animal

Futuras gerações, reduzindo a demanda com bens finitos, ao retornar fósforo à alimentação animal.

 

Um Pilar da Sustentabilidade Global

Com o aumento da demanda por proteínas e a pressão por práticas agrícolas mais sustentáveis, o rendering se posiciona como um pilar fundamental para o futuro da produção animal.

Ele combina eficiência econômica, proteção ambiental e segurança alimentar, demonstrando que é possível alinhar produção e sustentabilidade.

Isso pode ser traduzido por uma palavra: Bioeconomia Circular”: o Livestock Environmental Assessment Performance Partnership (LEAP) da FAO está, neste momento, nas etapas finais prévias à publicação ao seu Guia de Bioeconomia Circular, onde pela primeira vez haverá uma definição clara do que é Bioeconomia Circular e como que as autoridades ambientais dos países que geram as políticas de redução de emissões deverão estabelecer suas bases, considerando pela primeira vez, a circularidade de diversos setores.

Isso é especialmente importante, pois até este momento, as métricas para o cálculo de Análise de Ciclo de Vida (ACV) de todo e qualquer produto é “linear”, e não prevê circularidade, ou seja, hoje, todos os cálculos de ACV ignoram que alguns produtos retornam à cadeia de produção, reduzindo demanda por matérias-primas de “primeiro uso”, e fazem um “upcycling” de nutrientes via a produção animal.

E esse é exatamente o caso do rendering: ao se valer de resíduos de origem animal como matéria-prima, e gerar ingredientes de origem animal utilizados na alimentação de animais de produção, se realiza o ‘upcycling’ de valiosos nutrientes, muitos desses de fontes não-renováveis!

Ao transformar resíduos em recursos, a indústria de rendering é uma aliada indispensável no desafio de alimentar uma população mundial crescente de forma responsável.

Com a publicação desse Guia de Bioeconomia Circular da FAO/LEAP se espera que as devidas métricas sejam disponibilizadas, o que implicará em adequada valorização dos ingredientes “upcycled” que, ao serem utilizados nas dietas de animais de produção, resultam em produções de rações de menores emissões e por consequência, produtos de origem animal (carnes, leites, ovos) com menor pegada de carbono.

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