E fomos trabalhar com produção de leite e aprendemos que os alimentos, os animais e os serviços do sistema de produção necessitam de água em quantidade e com qualidade. Afinal um produto que tem em média 87% de água em sua constituição pode ser classificado como um produto água-dependente.
Acredito que não exista produtor(a), técnico(a) e profissional do setor leiteiro que se perguntado se a água é importante para produção de leite não responda, SIM! Mas quando esses mesmos atores são questionados sobre como a produção usa e consome a água, as respostas não são tão rápidas.
Por exemplo, quanto de água uma vaca em lactação consome por dia, é uma novilha, e um bezerro? Quanto de água se consome para lavar as instalações da ordenha ou na irrigação das pastagens? Qual o poder poluidor das águas de lavagem? Qual o melhor manejo dos resíduos? A água que os animais consomem tem a qualidade exigida?
As respostas a todas essas perguntas não são simples, pois há muitos “depende”. Estamos falando de vacas em lactação de quantos quilos de leite por dia, de qual genética, com qual alimentação e em qual condição climática? Qual o tipo do sistema de irrigação e o manejo de lavagem da ordenha? Qual a relação concentrado/volumoso e a ingestão de matéria seca/dia?
Para a pergunta sobre a qualidade exigida, não tem “depende” esta está determinada por duas Resoluções do Conselho Nacional de Meio Ambiente, 357/2005 e 386/2008. Importante! Apesar de muitos dizerem que deve ser dada água potável para os animais, isso não é verdade. Água potável é um padrão de consumo restrito a humanos. Para mais informações sobre o tema assista a série Boas Práticas Hídricas: Qualidade da Água (https://www.youtube.com/watch?v=pDb4khYtYyE) e Como Coletar uma Amostra para Análise da Água (https://www.youtube.com/watch?v=sPwgMZMdxPs&t=2s)
Se as respostas a essas perguntas não são fáceis e têm muitos “depende” quanto antes conhecermos e medirmos o uso e o consumo de água nos sistema de produção, mais rápido iremos ter as respostas para as várias condições produtivas e com isso ter uma produção leiteira hidricamente mais eficiente. Para começar a ter estas respostas, duas coisas são fundamentais: inserir o manejo hídrico na rotina produtiva e instalar equipamentos de medição do consumo de água na propriedade.
O equipamento de medição mais simples e barato e que nos dará informações para o correto manejo hídrico é o hidrômetro. Quanto maior o número de hidrômetros instalados na propriedade, maior o poder de decisão hídrica do produtor(a) e mais eficiente se tornará o uso da água.
Para quem ainda não começou, dê o primeiro passo, instale o primeiro hidrômetro! Para mais informações sobre o tema assista a série Boas Práticas Hídricas: Consumo de Água (https://www.youtube.com/watch?v=abBOEMVpaKE)
Há cinco anos, quando eu perguntava em qualquer reunião de produtores e técnicos quantas propriedades eles conheciam que tinham hidrômetro instalado, se um levantasse a mão, eu dizia que ele(a) era um extraterrestre, porque ter o hidrômetro não era coisa desse mundo! Atualmente, essa realidade vem mudando, ou por iniciativa de produtores ou por programas das agroindústrias.
Até o momento, no meu livro de recordes está um produtor do Vale do Paraíba-SP que tem 16 hidrômetros instalados em um sistema de produção misto (pasto e confinamento). Nesta propriedade todos os consumos são medidos, inclusive o das pessoas.
Mas devo dizer que as perguntas listadas acima não são as mais difíceis de serem respondidas. A sociedade cada vez mais vai nos questionar sobre as nossas práticas ambientais, entre estas o uso da água e o manejo dos resíduos da produção leiteira. Perguntas como: quanto de água, energia, nitrogênio ou fósforo se consome para produção de um litro de leite? Quanto de esgoto é gerado por um sistema de produção e como este é manejado? Quais os indicadores de eficiência ambiental da atividade?
Estas perguntas estão relacionadas a novos valores da sociedade. Se não gerarmos e comunicarmos nosso desempenho hídrico e ambiental, utilizando indicadores reconhecidos como verdadeiros, sempre estaremos fragilizados em discussões com a sociedade e em negociações comerciais.
A produção das informações e, consequente, geração de conhecimentos não pode ser responsabilidade de um ator da cadeia de produção do leite. Isso deve ser feito a várias mãos, pois cada ator detém informações importantes, que juntas irão compor programas e políticas. Não há nada de novo nisso, é puro aprendizado com as experiências dos outros. Países tradicionais em produção leiteira como a Nova Zelândia (https://www.dairynz.co.nz/environment/), Irlanda (https://www.origingreen.ie/) e a Holanda (Mineral Accounting System – MINAS) desenvolveram programas multisetoriais e ferramentas de apoio para promoverem a adequação ambiental das propriedades e responderem aos anseios dos consumidores. Se os esforços não forem conjuntos, os avanços são vagarosos e com maior custo.
A pegada hídrica é um indicador de apropriação da água que considera os consumos diretos e indiretos. O método calcula os consumos de água verde, calculada a partir da evapotranspiração das culturas vegetais; azul, refere-se ao consumo de fontes superficiais e subterrâneas; cinza, volume de água necessário para assimilar a carga de poluentes que atingem os corpos d’água.
Ainda no ano de 2019, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação irá publicar um manual técnico para cálculo da pegada hídrica na produção animal.
Esse material é resultado de dois anos de trabalho de um grupo de 39 pesquisadores de todo mundo. O objetivo é fazer com que os estudos nessa temática sigam uma mesma metodologia, reduzindo os erros de interpretação e comunicação dos resultados.
Na Tabela 1 são apresentados valores de pegada hídrica para o produto leite. A discrepância entre os valores é resultado de diferenças entre os métodos e premissas de cálculo, sistema de produção, raça dos animais, tipo de alimentação, etc.
Portanto para relacionar e comparar os valores de pegada deve-se ter conhecimento dos detalhes do estudo, considerando os aspectos descritos. Caso contrário, se terá conclusões e comparações incorretas que só contribuem para causar conflitos entre a atividade e a sociedade.
Deve-se destacar que o cálculo do valor da pegada hídrica não é o objetivo fim. O cálculo deve ser uma etapa intermediária de um objetivo maior que é a correta gestão dos recursos hídricos pela atividade leiteira.
O valor da pegada deve ser entendido como uma fotografia de um processo produtivo e ao se ter conhecimento desse valor, deve-se perguntar: o que posso fazer para tornar o uso da água mais eficiente?
Esse é o objetivo fim, produzir o mesmo litro de leite com menos litros de água. Isso é possível tecnicamente e viável economicamente. Tudo começa com o manejo nutricional dos animais.
NOVELLI (2017) avaliou o impacto do ajuste do teor de proteína bruta na dieta de vacas em lactação no valor da pegada hídrica do leite (Figura 1). A pegada hídrica do Grupo 1 (dieta com 20% de PB) com base no nitrato foi de 503,79 L/kg de leite corrigido (86,1% água verde, 13,4% água azul e 0,43% água cinza) e a do Grupo 2 (dieta com proteína ajustada) foi de 452,59 L/kg de leite corrigido (85,3% água verde, 14,3% água azul e 0,45% água cinza).
Entre as três águas, a verde foi a que apresentou maior consumo, atestando a importância da eficiência hídrica na agricultura para os produtos de origem animal. A prática de irrigação das pastagens representou o maior consumo de água azul.
A manipulação do teor de proteína do concentrado resultou em um impacto positivo, pois promoveu a redução do valor da pegada hídrica total. Na água azul isso foi verificado pela redução no consumo de água de dessedentação.
A redução do teor de proteína na dieta determinou também a melhor eficiência do uso de nutrientes pelos animais, reduzindo a carga de nutrientes disposta no ambiente e o consumo de água cinza.
Em outro estudo Fcamidu et al. (2019) calcularam a pegada hídrica mensal nas dimensões verde, azul e cinza de um sistema leiteiro misto (Figura 2). O manejo nutricional da fazenda era dividido em duas estações: primavera-verão, animais a pasto e outono-inverno, animais em confinamento e a média de produção das vacas em lactação de 16,7 litros/animal/dia.
A PH anual do sistema de produção foi de 831 L/kg de leite corrigido, sendo que a PH verde representou 98,7% desse valor. A estação a pasto apresentou uma PH média de 610 L/kg de leite corrigido e no período de confinamento esse valor foi de 986 L/kg de leite corrigido. A PH da fase de confinamento foi 62% maior do que a PH a pasto.
Os autores concluíram que o tipo de sistema de produção influencia no valor da pegada hídrica e, consequentemente, na sua variabilidade mensal, sendo que no sistema confinado a pegada hídrica foi maior. Em termos de manejo, a principal diferença entre estes sistema era o tipo de alimentação. As dietas do confinamento promoveram maiores consumos de águas verde e cinza e não impactaram no consumo de água azul. A permanência dos animais a pasto contribuiu para eficiência hídrica do produto leite.
Alguns desses mamíferos foram domesticados pelos humanos a fim de atender suas necessidades alimentares e de vida em comunidade. A história segue seu curso até hoje, onde há água existe a possibilidade de se produzir proteína animal que irá alimentar os humanos.
Mas novas nuances fazem parte desta história, o volume de água no mundo é o mesmo desde sempre, mas sua qualidade tem sido depreciada pelas atividades humanas; as populações crescem, mais consumidores; os rebanhos animais crescem e os sistemas de produção se intensificam, o que torna a demanda absoluta de água muitas vezes maior, bem como o potencial poluidor dos sistemas.
A história tem que ser reescrita. O elemento água precisa ser entendido, planejado e manejado de forma diferente, como algo limitado e de alto custo. Façamos isso para que a história da água, do leite e de nós se perpetue e seja bela. Pintada com os vários tons de azul.
Referências Bibliográficas
NOVELLI, T. I. Impacto de intervenções nutricionais no valor da pegada hídrica do produto leite bovino. 2017. Dissertação (Mestrado em Nutrição e Produção Animal) – Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia, Universidade de São Paulo, Pirassununga, 2017. doi:10.11606/D.10.2018.tde-16042018-122945. Acesso em: 2019-03-28.
FCAMIDU, B.V.; GIUSTI, G.; NOVELLI, T.I.; PALHARES, J.C.P. Pegada hídrica mensal de um sistema leiteiro misto. In: VI Simpósio Internacional sobre Gerenciamento de Resíduos Agropecuários e Agroindustriais, 2019, Florianópolis. Concórdia: Sociedade Brasileira dos Especialistas em Resíduos das Produções Agropecuária e Agroindustrial, 2019. Disponível em http://sbera.org.br/pt/sigera/
Por Julio Cesar P. Palhares | Embrapa Pecuária Sudeste