Influência da fibra na funcionalidade intestinal de cães
A funcionalidade do intestino depende da microbiota intestinal, que é essencial para o metabolismo e absorção de nutrientes e outros compostos consumidos pelos animais. Uma microbiota saudável apresenta alta diversidade de gêneros microbianos em um delicado equilíbrio, permitindo um aumento da capacidade metabólica do intestino.
A dinâmica populacional da microbiota intestinal é alterada de acordo com:
- Idade;
- Nutrição;
- Estresse;
- Doenças infecciosas bacterianas;
- Higiene;
- Consumo de prebiótico e probiótico.
Adicionalmente, a composição de macronutrientes e a adição de alguns ingredientes específicos na dieta podem auxiliar na modulação da microbiota e dos seus metabólitos e assim, produzir benefícios para a saúde geral dos cães.
Entre os diversos compostos que atuam como moduladores da microbiota, do sistema imune e da integridade intestinal de cães, destacam-se as fibras.
Fibra dietética é definida como polissacarídeos e substâncias associadas à parede celular das plantas resistentes a ação de enzimas digestivas em mamíferos por apresentarem ligações do tipo β (Van Soest, 1994).
Embora não sejam digestíveis, os cães apresentam microrganismos, principalmente no cólon, que fermentam as fibras e produzem metabólitos que podem promover efeitos fisiológicos benéficos, prevenir doenças e gerar energia para as células da mucosa intestinal.
É importante ressaltar, que a fermentação da fibra dietética é mais variável do que a digestão dos macronutrientes amido, gordura e proteína, por exemplo. Essa variação é principalmente devido a mudanças nas propriedades físico-químicas da fibra como:
- Volume;
- Viscosidade;
- Solubilidade;
- Capacidade de retenção de água;
- Grau de fermentabilidade.
Fibras em dietas para cães
A utilização das fibras em dietas para cães já foi muito questionada pelo desconhecimento da sua funcionalidade nutricional e pela incapacidade de digestão desses compostos por essa espécie.
No entanto, com o avanço de pesquisas, o papel e a importância da fibra na nutrição de cães foram repensados, associando resultados positivos da sua utilização com a regulação do trânsito da digesta, manutenção da integridade e funcionalidade do intestino e modulação da microbiota intestinal.
Além disso, estudos disponíveis na literatura demonstram que devido as suas propriedades físico-químicas (como solubilidade, viscosidade e capacidade de retenção de água) esses compostos influenciam na formação da consistência das fezes, diluição de energia do alimento, regulação do apetite e saciedade dos cães (Bosch et al., 2009; Sabchuk et al., 2017).
Efeito da fibra no ambiente intestinal
A suscetibilidade da fibra dietética à fermentação microbiana varia dependendo da acessibilidade da fibra à população microbiana no intestino. Em animais monogástricos, como os cães, o intestino grosso é o local mais importante de fermentação, sendo que a fermentação da fração solúvel da fibra ocorre principalmente no cólon proximal, enquanto a fermentação da fração insolúvel é mantida até a região cólon distal.
De modo geral, a fermentação da fibra é um processo extremamente complexo, afetado por muitos fatores no trato gastrointestinal, incluindo o hospedeiro, sua microbiota e a interação que ocorre entre eles.
Os AGCC são os principais produtos finais da fermentação bacteriana colônica de amido não absorvido e polissacarídeos não-amiláceos e os principais ânions orgânicos presentes no conteúdo colônico (Bugaut, 1987).
Por outro lado, os ácidos graxos de cadeia ramificada (AGCR) isto é, isobutirato e isovalerato, resultam da degradação de proteínas por bactérias com potencial patogênico. Além dos AGCC, outros metabólitos como lactato, etanol e succinato também são produzidos a partir de fermentação bacteriana da fibra.
Após a produção, os AGCC são prontamente absorvidos pelo epitélio intestinal por difusão passiva e usados para favorecer o crescimento bacteriano. Além disso, embora os AGCC sejam principalmente absorvidos e metabolizados pelas células intestinais, estes são também usados como fonte de energia por outros tecidos do organismo: intestino, fígado e músculo.
Em adição, a absorção de AGCC estimula a reabsorção de água e eletrólitos, estando diretamente ligada com a função osmorreguladora do intestino, gerando efeito sobre a umidade das fezes.
Em adição, a presença de AGCC estimula a secreção do glucagon like-peptide 2, um hormônio entérico, o qual impulsiona a diferenciação e proliferação celular e a expressão de determinados genes que estão associados ao transporte de nutrientes no íleo, melhorando, portanto, a função digestiva.
- Além disso, o crescimento da mucosa também melhora sua função de barreira, reduzindo a permeabilidade e consequentemente a translocação de microrganismos (NRC, 2006).
A fibra também pode influenciar a população e a atividade de bactérias no intestino, afetando as condições para a proliferação da microbiota intestinal (Brito et al., 2021). Adicionalmente, além de fornecer energia aos colonócitos e estimular o crescimento e metabolismo das bactérias não patogênicas, são capazes de reduzir o pH luminal, ou seja, gerar um ambiente desfavorável para o crescimento de bactérias com potencial patogênico, como por exemplo, Clostridium dificile e E. colli.
Esses microrganismos realizam a fermentação microbiana de compostos nitrogenados endógenos e/ou não-digeridos, como amônia, aminas biogênicas, AGCR; favorecendo a formação de substâncias putrefativas, que são responsáveis pelo mau odor das fezes, efeitos indesejáveis pelos tutores dos cães. Muitos destes compostos putrefativos, além de serem odoríferos, exercem efeito adverso à saúde intestinal: como aumento da permeabilidade, disbiose, enterites entre outros.
Desse modo, além de uma dieta balanceada e com proteínas de alta digestibilidade, o uso de fibras na dieta, pode contribuir com a redução da formação de compostos putrefativos no cólon de cães.
Alguns gêneros como Faecalibacterium spp., Blautia spp., Turicibacter spp. e Fusobacterium spp. são consideradas bactérias “sentinela” porque são sensíveis a alterações na homeostase intestinal e são reduzidas em cães com doenças gastrointestinais (Alshawaqfeh et al., 2017; Félix et al., 2022). Sendo que, a maioria desses gêneros estão associados à digestão de fibra alimentar e produção de AGCC.
Ainda, os seus metabólitos possuem efeitos anti-inflamatórios na mucosa intestinal. Além disso, foi demonstrado que a ingestão de fibra reduz o risco e os sintomas de muitas patologias metabólicas e inflamatórias:
Outro efeito interessante da ingestão de fibras é a possível modulação da motilidade gastrointestinal, uma vez que, os sais biliares secundários e AGCC produzidos pela fermentação bacteriana, estimulam as contrações do músculo liso circular intestinal (Eswaran et al., 2013).
Além dessa ação, há evidências de que a adição de fibra em altas concentrações podem aumentar a produção de mucina no intestino, que também tem papel imunológico, pois a mucina ajuda a evitar a translocação e aderência de bactérias patogênicas à mucosa intestinal, modulando indiretamente a microbiota intestinal (Saqui-Salces et al., 2017).
Considerações finais
Em conclusão, a presença de fibra dietética na dieta afeta significativamente o ambiente microbiano intestinal, propicia condições de lúmen mais favoráveis, estimulando o crescimento de microrganismos comensais e produção de metabólitos com funções importantes para funcionalidade intestinal. Por outro lado, o efeito da fibra dietética na funcionalidade intestinal depende das propriedades físico-químicas da fibra.
Referências Bibliográficas
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