Com a queda do Muro de Berlim, em 1989, o cientista político americano Francis Fukuyama trouxe a sua visão sobre o “fim da história” e um futuro marcado pelo avanço progressivo da ordem liberal internacional, baseada em democracia, livre comércio e interação pacífica entre as nações. Acontecimentos recentes jogaram essas previsões por água abaixo. O avanço da Otan para dentro da esfera da antiga União Soviética provocou uma forte reação da Rússia, que em 2014 respondeu à queda do presidente da Ucrânia aliado, Viktor Yanukovych, com a ocupação e anexação da Crimeia.
A fome vivida pelo povo ucraniano contrasta com as condições extremamente favoráveis de produção agrícola daquele país, onde predominam terras planas e escuras, conhecidas pela sua riqueza em matéria orgânica. Essas terras foram cobiçadas pela Alemanha nazista quando Hitler invadiu a União Soviética, em 1941, e depois serviram como celeiro para alimentação da população soviética.
Após a desintegração da União Soviética, o setor agropecuário ganhou importância no cenário de colapso industrial da Ucrânia. O quadro abaixo ilustra o crescimento na produção de alguns cereais e oleaginosas.
No trigo, a Rússia e a Ucrânia respondem por cerca de um quarto do comércio mundial. Vale destacar também que os dois países vêm aumentando rapidamente a produção de soja e derivados, com as exportações de óleo de soja crescendo 18% ao ano desde 2010. Eles são fortes concorrentes potenciais do Brasil nos mercados mundiais de soja e milho, sob a batuta da China, que tenta reduzir a sua dependência em relação aos produtores das Américas.
É pouco provável que uma invasão provoque mudanças imediatas nas importações agroalimentares da Rússia. Em 2014, em resposta às sanções de países ocidentais, a Rússia adotou uma política de substituição de importações. Respaldada por subsídios e por uma rápida modernização da sua agricultura, atingiu a quase autossuficiência em proteínas animais, chegando a exportar alguns desses produtos, como carne bovina e suína. Na carne de aves, os dois países já responderam por 4,5% do comércio mundial.
O conflito pode exacerbar a já alta inflação de alimentos no Oriente Médio e no Norte da África, região que depende fortemente da importação de produtos agrícolas. Os distúrbios da Primavera Árabe ilustram as consequências da insegurança alimentar nessa parte turbulenta do mundo. A região pode sofrer com um aumento ainda maior nos preços agrícolas, hoje já elevados, já que a Rússia e a Ucrânia respondem por cerca de 50% das suas importações de trigo.
No curto prazo, portanto, de um lado vemos uma ameaça à segurança alimentar de diversos países que dependem de importações. De outro, produtores de grãos de concorrentes da Ucrânia e da Rússia, como é o caso do Brasil, podem se beneficiar do aumento de preços e participação de mercado nas cadeias de milho, trigo e soja. |
Com quase 100 milhões de hectares de terras agricultáveis, e com a mudança climática já deixando novas áreas para a agricultura abertas na Sibéria, a Rússia detém um grande potencial inexplorado para cobrir parte da pujante demanda chinesa por alimentos. Ao Brasil interessa particularmente acompanhar a relação entre a Rússia e a China no agro, sendo que a primeira vai se transfigurando de cliente a concorrente.