Pesquisadores reuniram orientações para conter a disseminação de micotoxinas no trigo, compostos tóxicos responsáveis por cerca de 25% da contaminação mundial de alimentos em todo o mundo, de acordo com a com a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). Resultados das últimas décadas de pesquisa foram organizado por especialistas da Embrapa Trigo (RS) na publicação Micotoxinas no trigo: estratégias de manejo para minimizar a contaminação. São apresentadas boas práticas e estratégias de manejo para serem usadas desde o campo até a indústria.
As micotoxinas são compostos tóxicos produzidos por fungos, que podem afetar a saúde de seres humanos e animais. A intoxicação acontece de forma direta, quando o produto é utilizado na alimentação, ou indireta, quando subprodutos e derivados contaminados são utilizados na alimentação de animais que transferem as toxinas para o leite, carne e ovos.
A forma direta é a mais frequente via de intoxicação e ocorre pelo consumo de cereais, sementes oleaginosas e produtos derivados que foram contaminados nas fases de produção e de armazenamento. Resistentes à industrialização, as micotoxinas continuam presentes nos alimentos mesmo após cozimento ou processamento, sem alterar a aparência ou o sabor.
No trigo, três micotoxinas são as mais importantes: deoxinivalenol (DON) e zearalenona (ZEA) – relacionadas à incidência de fungos do complexo Fusarium graminearum – e ocratoxina A (OTA) – produzida pelos fungos Penicillium verrucosum e Aspergillus ochraceus durante a armazenagem.
A publicação da Embrapa apresenta resultados de pesquisa que buscam minimizar a contaminação do trigo por essas substâncias tóxicas a partir de estratégias que começam no campo, passam pela armazenagem até sair da indústria.
Boas práticas para reduzir a contaminação no campo
A contaminação mais frequente no trigo é por DON devido às epidemias constantes de giberela nas lavouras de cereais de inverno no Sul do Brasil. Causada pelo fungo Gibberella zeae, essa é a pior doença do trigo na região, que concentra 90% da produção nacional. Além de infectar a planta, o fungo também pode produzir micotoxinas. Quando a epidemia é severa, leva à má-formação e alterações na coloração dos grãos, que ficam esbranquiçados a rosados.
As boas práticas agrícolas visam ao controle de doenças na lavoura, especialmente a giberela. A pesquisa indica diversas estratégias, como controle genético, manejo cultural e químico.
“A primeira orientação é escolher uma cultivar que apresente algum nível de resistência. Mesmo que não seja totalmente imune ao fungo, a melhor tolerância vai ajudar no controle”, destaca o pesquisador da Embrapa José Maurício Fernandes.
A segunda orientação do cientista é fazer o escalonamento da semeadura, com cultivares de ciclos diferentes, evitando que toda a lavoura de trigo tenha espigamento na mesma época, o que aumenta o risco de infecção por giberela em todas as espigas. A terceira estratégia é o controle químico: “Os fungicidas podem controlar entre 50 e 80% da doença, mas precisam ser aplicados de forma preventiva. Para isso é importante observar as previsões climáticas ou fazer uso de modelos que simulam o risco de epidemias”, explica Fernandes.
Para definir as melhores alternativas de controle químico, um grupo de pesquisa, composto por diversas empresas e instituições, publicou o resultado de experimentos com uso de fungicidas para giberela no site.
Estratégias na pós-colheita
Grãos giberelados podem apresentar menor tamanho e deformações. Ajustes na colhedora, como peneiras e regulagem na plataforma, podem separar grãos com sintomas de giberela. O transporte em caminhões limpos e em trajetos curtos também ajuda no controle de fungos e pragas.
Na pós-colheita de trigo, métodos físicos são usados para limpar, separar e classificar os grãos com base em uniformidade, peso, tamanho e forma. Na chegada ao beneficiamento, são utilizados equipamentos de pré-limpeza, como ar, peneiras e mesa de gravidade para descarte de impurezas e grãos deformados.
Novas tecnologias, como o selecionador óptico, também podem ajudar na identificação e retirada de grãos infectados por fungos. “Na limpeza e seleção o nível de DON pode ser reduzido entre 7 e 90%, dependendo do percentual de descarte de grãos leves e chochos, com sintomas de giberela”, comenta a também pesquisadora da Embrapa Trigo Casiane Tibola.
Quando a contaminação por micotoxinas está presente em grãos assintomáticos, pode ser utilizado o polimento superficial, capaz de reduzir os níveis de DON em 30%, sem afetar a qualidade da farinha integral. A estratégia é utilizada principalmente na indústria para a produção de alimentos integrais.
O trigo apresenta cerca de 75% de carboidratos em sua composição, sendo um substrato preferencial de fungos, o que o torna altamente suscetível ao acúmulo de micotoxinas durante a armazenagem. Cuidados na secagem dos grãos e limpeza das instalações podem evitar a proliferação de insetos que, além de causar danos aos grãos, podem ser vetores de fungos produtores de micotoxinas. Grãos giberelados também precisam ser separados para um tratamento diferenciado.
As espécies dos gêneros Aspergillus e Penicillium são os fungos de maior relevância durante a etapa de armazenamento por produzirem metabólitos secundários, as micotoxinas aflatoxina (AFLA) e ocratoxina A (OTA).
Além de inseticidas para fazer o expurgo de insetos nos grãos, também pode ser utilizado o gás ozônio, que não deixa resíduos e atua na degradação de várias micotoxinas, com potencial de reduzir os níveis de contaminação entre 30 e 80%.
Controle de micotoxinas no processamento
Análises com alimentos contaminados mostraram que DON resiste aos processos industriais utilizados na fabricação de biscoitos, barra de cereais e pães. Em laboratório, a micotoxina só foi eliminada em temperaturas superiores a 210º C, o que prejudica grande parte dos atributos de qualidade dos alimentos.
Contudo, a transformação do trigo em alimentos pode apresentar variações no nível de contaminação conforme a micotoxina e a forma de processamento.
A moagem pode reduzir os níveis de DON entre 30 e 50% na farinha branca quando os grãos resultam de infecções leves. Entretanto, nos casos de contaminação superior a 3000 ppb (parte por bilhão), a redução de DON atinge somente 11%. Um exemplo prático para entender o universo dessa medida é considerar que um bilhão de grãos de trigo corresponde a aproximadamente 35 toneladas. Logo, 1 ppb é o equivalente a um grão contaminado distribuído em uma carga de 35 toneladas de trigo.
Na panificação, houve 50% de redução de DON na elaboração de pães de trigo branco e integral, em comparação às análises realizadas na farinha de partida. Porém, houve um aumento, não significativo estatisticamente, nos níveis de ZEA.
Trabalhos que analisaram o efeito do cozimento em espaguetes e noodles (macarrão estilo japonês) frescos reportaram que 42% a 70% de DON foi liberado na água.
Na alimentação animal, a redução na contaminação pode contar com o uso de adsorventes e produtos que neutralizam as micotoxinas na ração. Estratégias de segmentação dos grãos, conforme a tolerância dos animais em cada fase de crescimento, também pode ser implementadas.
Cenários e limites de contaminação
O manejo desses contaminantes é uma preocupação crescente, com limites máximos de tolerância cada vez mais restritivos estabelecidos por legislação, com base em dados de monitoramento e efeitos adversos à saúde.
A pesquisadora Patrícia Andrade, do Instituto Federal de Brasília (IFB), DF, avaliou a incidência de micotoxinas em cereais e produtos à base de arroz, milho, sorgo e trigo. No trigo, foi verificada a prevalência de DON, sendo possível categorizar os alimentos:
Andrade, 2020.
Atualmente, na maior parte dos países, o valor para consumo de farinha branca contendo DON é de 1.000 ppb como é o caso dos Estados Unidos, Canadá e a maioria dos países da União Europeia, bem como os países que adotam o CODEX Alimentarius – Programa Conjunto de Padrões Alimentares da FAO do qual fazem parte 188 países, inclusive o Brasil.
Micotoxinas ainda desafiam a ciência
De acordo com o professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), RS, Carlos Augusto Mallmann, a correta avaliação dos níveis de contaminação dos grãos por micotoxinas ainda é um desafio. “A distribuição das micotoxinas em um lote de alimento é heterogênea e, por isso, a amostragem para análise em cereais é mais complexa que uma amostragem para análise de proteína, por exemplo. Essa característica dificulta a obtenção de uma amostra representativa, determinando equívocos na interpretação dos resultados e no diagnóstico”, explica o professor, lembrando que o problema é agravado pelo fato de as micotoxinas se concentrarem em níveis baixos (parte por bilhão – ppb).
De modo geral, segundo Mallmann, não há uma correlação consistente entre os níveis de grãos danificados por giberela e a concentração de micotoxinas. Assim, torna-se difícil realizar a segregação prévia de lotes de grãos, gerando grande demanda de análises pelos métodos de detecção direta.
Os métodos disponíveis para análises de micotoxinas variam de qualitativos, que consistem em determinar a presença/ausência de determinada micotoxina, aos métodos analíticos altamente precisos, capazes de quantificar níveis extremamente baixos de diferentes micotoxinas. Os métodos mais empregados para quantificação de micotoxinas são: cromatográficos, Elisa (Enzyme linked immunosorbent assay) e NIR (Near Infrared spectroscopy).
Para avaliar o nível de contaminação dos alimentos, pesquisadores da Embrapa Trigo avaliaram 1.000 amostras comerciais de trigo brasileiro produzido no período de 2009 a 2017 através do método de cromatografia referência. Os resultados mostraram que 36% das amostras apresentaram níveis de DON acima do atual limite permitido, que é 1000 ppb em trigo moído.
Na segregação de lotes com variados níveis de micotoxinas, a Embrapa também tem utilizado a espectroscopia no infravermelho próximo – NIR – um equipamento que analisa alimentos por meio de radiação eletromagnética. “Os métodos baseados em espectroscopia têm recebido atenção, especialmente devido a preparação mínima da amostra, rapidez, otimização de mão de obra e baixo custo. O tempo de análise demanda dois minutos e o custo limita-se à manutenção periódica do equipamento”, complementa a pesquisadora da Embrapa Trigo Casiane Tibola.
Mudanças Climáticas e os impactos nas micotoxinas
Um estudo americano sobre o aumento da temperatura global e a interferência no acúmulo de micotoxinas no trigo mostrou que a elevação da temperatura é um fator potencial para a pressão de giberela, bem como para o acúmulo de micotoxinas em grãos de trigo. No tratamento onde a temperatura do solo elevou em 3 a 5 °C, houve aumento de 131% nos grãos giberelados e 84% na ocorrência de micotoxinas.
Outro risco alertado pelo estudo é o possível efeito das mudanças climáticas sobre a variabilidade genética de espécies de Fusarium. “Entre as micotoxinas produzidas pelas espécies membros do complexo Fusarium graminearum, DON é a micotoxina mais frequente e em maior concentração no trigo em todo o mundo. No entanto, outras micotoxinas têm sido encontradas em trigo comercial, como nivalenol e zearelenona”, explica o pesquisador da Universidade Federal de Viçosa (UFV), MG, Emerson Del Ponte.
Segundo Del Ponte, o mundo enfrenta o risco de contaminação do trigo por multimicotoxinas. “A expansão da triticultura, as mudanças climáticas e a dinâmica da cadeia produtiva demandam um conhecimento aprofundado dos mecanismos envolvidos na produção de micotoxinas em trigo no Brasil”, conclui o pesquisador.
No futuro próximo, com a ausência de genótipos de trigo resistentes, projeta-se que o problema das micotoxinas tenha ainda mais importância devido a fatores como mudanças climáticas, disseminação e alterações na população de fungos toxigênicos e resistência dos fungos aos fungicidas.
Por: Embrapa Trigo
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